No relacionamento
homem/comunidade, a interação costuma ser tanta, que não sobra margem para
análises isoladas. É a origem das famosas “histórias que se confundem”, do que
JK e Brasília são ótimo exemplo.
Sem fugir à regra, a cidade de Governador Valadares coleciona “chamegos” e
parcerias antológicas. Sua biografia inclui bastante gente com quem se envolveu
intensamente, a ponto de ambas se tornarem “um só corpo e uma só alma”. Pessoas
que vestiram, valorizaram e suaram a camisa valadarense, como se fosse a
própria pele.
É o caso do padre João Verbeek, o holandês que aqui chegou em meados do século
passado, na plenitude de seus 30 anos, acompanhado pelos conterrâneos e também
sacerdotes Antônio Goolsens e Teodoro Grond, todos da Congregação do Espírito
Santo.
Em janeiro de 1951, ele assumiu e logo se tornou vigário da Paróquia de Santo
Antônio, a única existente na cidade.
Presença marcante, chamava atenção, não apenas por sua avantajada estrutura
física, mas pela forma simpática e descontraída de se relacionar com a
comunidade. Nem as dificuldades de idiomas atrapalhavam essa sinergia.
Naquele tempo em
que os padres só se apresentavam de batinas, ora pretas, ora brancas, ele
circulava pela cidade, pedalando uma humilde bicicleta, enquanto distribuía
sorrisos, acenos e santinhos que cativavam paroquianos de todas as idades.
Apesar do olhar severo, tinha um sorriso aberto e cativante, sobretudo para as
crianças. Possuía o hábito de apertar forte a mão daqueles que cumprimentava,
assim como forte era o tom de sua voz, nas pregações.
Na condição de vigário, recebeu da Arquidiocese de Diamantina a incumbência de
aparelhar Valadares para acolher a futura diocese. A agenda incluía aprontar o
palácio episcopal, a catedral e o seminário diocesano, além de angariar fundos
que ajudassem na execução do plano. Paralelamente, deveriam ser construídas a
igreja e a casa paroquial do bairro de Lourdes, para onde iriam os padres
espiritanos, depois de instalado o novo bispado.
Dinâmico e incansável, não se limitou a essas tarefas, que “tirou de
letra”. Executou diversas outras, todas relevantes. E o fez sem comprometer a
qualidade do trabalho pastoral, que sempre priorizou.
De cara, desmistificou a ideia de que padre só constrói igrejas e obras do
gênero. Edificou o Cine Pio XII, na esquina das ruas Israel Pinheiro e Arthur
Bernardes, que, por muito tempo, foi confortável e excelente fonte de
entretenimento para os valadarenses. Até uma missa dominical “das crianças” ali
era celebrada.
Na sequência, vieram a Maternidade Dom Serafim; o Hospital Menino Jesus; o
edifício destinado a uma escola profissionalizante, mais tarde utilizado pelo
Minas Instituto de Tecnologia (MIT); além de várias capelas e escolas. Sem
contar a primeira Igreja de Lourdes (hoje Capela do Espírito santo) e a Casa
Paroquial, ambas na Rua Paraná, o Clube Metrópole e a Matriz de Nossa Senhora
de Lourdes, um dos mais belos templos da cidade.
Não é tudo o que
fez, mas são obras que mostram a grandiosidade e a importância do legado que
deixou para Valadares. Algo sem precedentes, em se tratando de alguém que não
tinha envolvimentos políticos ou empresariais.
Realizador por excelência, carismático e muito admirado, não raro era assediado
para filiar-se a agremiações partidárias e, com grande chance de vitória,
candidatar-se a prefeito municipal. Não falta quem diga que seu prestígio
chegava a incomodar e a enciumar certos “caciques” da época. Ele, entretanto,
consciente de seus deveres e fiel à sua vocação, não se deixou seduzir.
Seu desapego ao sucesso ficou bem evidente quando, em 1968, abriu mão das
conquistas valadarenses, fez as malas e mudou-se para a paróquia de Anápolis
(GO). Ainda passou algum tempo em Matozinhos (MG), antes de regressar à
Holanda, pensando em lá viver como padre aposentado. Não conseguiu. A saudade o
trouxe de volta ao Brasil, para rever e despedir-se do povo que aprendeu a
amar.
Já deficiente auditivo, e locomovendo-se com dificuldade, retornou de vez à
Holanda, onde, no seu convento de origem, com 83 anos, faleceu sentado numa
poltrona e lendo jornal. O calendário marcava 24 de outubro de 2004.
Em tributo ao muito que fez por Valadares, o viaduto sobre a linha férrea da
Vale, ligando o Bairro Altinópolis e adjacências, recebeu seu nome. É
pouco, comparado aos seus méritos. Mas, pelo menos, faz lembrar a forma
obstinada com que lutava para encurtar caminhos e aproximar pessoas.
Em meio ao egoísmo, à individualidade e à indiferença que hoje proliferam,
poucos têm a coragem de abandonar o aconchego familiar, a tranquilidade e a
proteção da terra natal, para sair mundo afora, ajudando o próximo. Só os
idealistas, desprendidos e solidários se dispõem a tanto. Eles se impõem metas
e missões que colocam acima de obstáculos. João Verbeek fez disso o seu
postulado.
Nas quase duas décadas de convivência, a sintonia entre ele e Valadares foi
perfeita. Juntos, escreveram, a quatro mãos, memoráveis capítulos da
epopeia local. Tinham características distintas, mas os objetivos se
complementavam: uma cidade buscando ajuda e um sacerdote ávido por
ajudar. Só podia dar certo. E deu!
(Texto para a revista "Suindara" - edição de março/2015 - da Academia Valadarense de Letras)