quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O DOM DE DOM PELÉ

Por Etelmar Loureiro

É provável, e até certo ponto compreensível, que os valadarenses das gerações mais recentes pouco se lembrem do padre José Maria Pires. Mas os remanescentes dos que aqui viveram entre 1945 e 1955, não importa onde estejam, certamente guardam muitas e boas recordações dessa fantástica figura, que em Governador Valadares deixou um legado de simpatia, humildade e amor ao próximo, sobretudo aos mais humildes. Era também emérito e competente educador, talento revelado à frente do Ginásio Ibituruna.
Naquela época, em sua peregrinação pastoral, padre Zé Maria, como popularmente aqui o chamavam, era sempre visto de batina preta, pedalando sua bicicleta pelas ruas ainda empoeiradas da cidade, distribuindo sorrisos e acenos. Parava para dar santinhos a adultos e crianças, para papear com os moradores que outrora se sentavam nas calçadas residenciais, ou para auxiliar os que estivessem desamparados nas vias públicas.
A maneira lúcida, inteligente e equilibrada de conciliar os ensinamentos religiosos com as realidades do mundo, aliada à ótima oratória e a uma eximia forma de se comunicar, faziam dele um sábio conselheiro. As missas que celebrava eram repletas de fiéis ávidos pelos seus sermões.
A última demonstração de apreço para com Valadares ele deu recentemente, quando, em Belo Horizonte, já com 98 anos, rezou a missa de sétimo dia por alma do valadarense e ex-deputado estadual Matosinhos de Castro Pinto, ilustre filho de tradicional família local, da qual era muito amigo. Foi dele a homilia que, como sempre, a todos sensibilizou.
Padre Zé Maria nasceu aos 15.11.1919, em Córregos, Conceição do Mato Dentro (MG), onde, com seus pais e nove irmãos, viveu a infância e parte da adolescência. Além do que fez por Valadares, sua biografia mostra que ele se desincumbiu de várias outras nobres missões, antes ser nomeado arcebispo da Paraíba, condição em que se manteve por quase três décadas.
Oriundo de uma área carente do Vale do Jequitinhonha, enfrentou muito preconceito, por ser mulato e de origem social humilde. Sua história, entretanto, é repleta de fatos que, por mérito e justiça, premiaram a grandiosidade de seu jeito de ser. Teve momentos de convivência com cinco papas, foi companheiro de infância de JK, contemporâneo e amigo de dom Paulo Evaristo Arns, de dom Ivo Lorscheiter, de dom Aloísio Lorscheider e de outras tantas figuras que se opuseram aos governos militares. Marcante foi sua amizade fraterna com dom Helder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, que, por coincidência, também faleceu num 27 de agosto (1999).
O escritor Roberto Ribeiro conta que o codinome Dom Pelé surgiu por volta de 1962, tempo de Copa do Mundo, quando o craque Pelé, no auge da fama, marcava gols em profusão, jogo após jogo. Nessa ocasião, um encontro de bispos acontecia em Curitiba. Reunido o plenário, faltavam o mulato dom José Maria, de Araçuaí, e o gordo dom José Vicente Távora, de Aracaju, atrasados, por algum motivo. Quando os retardatários apareceram, um bispo brincalhão exclamou: "Agora podemos começar a reunião. Finalmente, estão chegando o Pelé e o Feola!” Nem por isso o bispo dom Vicente tornou-se dom Feola. Mas dom José ganhou o carinhoso apelido de dom Pelé, e assim passou a ser chamado pelos colegas, nos demais encontros da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.
Na nota que emitiu sobre a morte de José Maria Pires, a CNBB enfatizou que “a fidelidade à Igreja e a corajosa posição em favor dos mais desamparados sempre marcaram passo a passo sua caminhada”. 
            Como a eternidade não espera, Dom Pelé foi a seu encontro, no último domingo, 27, na capital mineira, onde tratava de uma pneumonia. Bispo mais idoso do Brasil, pode ter achado que 98 anos de vida estavam de bom tamanho.
            Partiu, deixando, para quem quiser, a ostentação, as vaidades, os caprichos, o egoísmo, a ganância e os bens materiais, pelos quais nunca se deixou seduzir. Foi de mãos vazias, como em vida as manteve.
            No imaginário coração espiritual, certamente levou a intenção de interceder pelos humildes, os pobres, os enfermos, os oprimidos e todos os infelizes que o ajudaram cumprir com brilhantismo a sua missão terrestre.
            Carismático, o padre José Maria Pires tinha o dom de ter dons, e o exerceu na sua plenitude.

            Para nós, seus eternos e incontáveis admiradores, deixou preciosas lições, valiosos ensinamentos e uma imensa saudade, que dói.

- Diário do Rio Doce - 31.08.2017

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