domingo, 4 de maio de 2014

SABEDORIA DE RACHEL

             Por muitos anos, a cearense Rachel de Queiroz (1910-2003) deteve o cetro de grande dama da imprensa brasileira, escrevendo crônicas para a revista semanal “O Cruzeiro”, uma das mais importantes de seu tempo. Isso sem falar no prestígio que desfrutava como romancista, tradutora e teatróloga, primeira mulher a ter assento na Academia Brasileira de Letras.
            Em “Votar”, memorável artigo publicado na “O Cruzeiro” de janeiro/1947, ela ministrou verdadeira aula aos eleitores brasileiros.
            Começou realçando a importância da expressão “governo do povo”, que deve ser tomada no seu sentido mais literal, “porque, numa democracia, o ato de votar representa o ato de fazer o governo”.
            Na sequência, advertiu que “pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo”.
            Em linguagem simples e didática, apontou quem são os escolhidos através do voto, alertando para os poderes de que eles se investirão.
            Lembrou “aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior, aqueles que irão estipular a quantidade desses impostos”. E complementou: “Vejam como é grave a escolha desses cobradores. Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso”.
            Noutra reflexão, fez ver que “pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também aqueles que vão ‘fabricar’ o dinheiro”. Considerou ser essa uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos, “pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir, sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais (que) zero”.
            Sob esses e outros exemplos, sugeriu que “quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fez um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que, tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio – lembrem-se de que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado. Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso; vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para eles comandarem – e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhes dá o povo”.
            Por isso, Rachel aconselha aos votantes: “Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva. Porque, afinal, a mulher, quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o governo, quando é ruim, ele é que nos dá a surra, ele é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia”.
            A brilhante escritora arriscou uma sugestão final: “se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto”.
            E arrematou: “Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem medo, não se esqueça de que dentro da cabine indevassável você é um homem livre. Falte com a palavra dada à força, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno”.
            O texto foi escrito há 67 anos, mas a sabedoria de Rachel é duradoura; vale pra qualquer época!
 
- Jornal de Domingo
- Diário do Rio Doce

 

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